Tributação e isenção no imposto de renda de lucros e dividendos

Cristóvão Barcelos da Nóbrega

Brasil de Fato

É imperioso trazer de volta a tributação para gerar recursos em situações emergenciais e fazer justiças fiscal e social

A tributação tem como propósito conseguir recursos para as políticas públicas e financiar o Estado, sendo, também, a forma mais indicada para se transferir renda e patrimônio dos mais ricos para os menos abastados e diminuir desigualdades sociais.

Pode-se fazer justiça fiscal em diversos tributos, mas o que tem mais potencial para redistribuir renda, cobrar mais de quem ganha mais, cobrar menos de quem ganha menos, tornar a sociedade menos desigual e mais equilibrada é o imposto de renda. Por isso, é muito importante que a inclusão de um rendimento como isento seja muito criteriosa. No entanto, a legislação blinda os mais ricos e torna o Brasil um dos países mais desiguais do mundo.

Ao longo da história, variou o tratamento tributário dispensado aos rendimentos derivados de lucros e dividendos. Até a isenção prevista na Lei nº 9.249/1995, a regra era tributar exclusivamente na fonte ou oferecer os rendimentos à tributação na declaração de Imposto de Renda Pessoa Física - IRPF. Eventualmente, eram considerados isentos ou não tributáveis, dependendo da natureza do rendimento e do valor.

Muito antes de o imposto de renda ser oficialmente instituído no Brasil, os dividendos eram, de vez em quando, sujeitos à tributação, descontados pela fonte pagadora e recolhidos ao Tesouro pela própria fonte pagadora, sem participação do contribuinte de fato. Era uma espécie de tributação exclusiva na fonte.

O imposto de renda foi instituído no Brasil, por meio do art. 31 da Lei nº 4.625, de 31 de dezembro de 1922. Na elaboração do modelo a ser adotado no Brasil, os defensores de regalias para o capital, como Jules Roche, interpretavam que tributar o lucro implicaria fuga de recursos e atingiria o desenvolvimento industrial. Não lograram êxito.

Até 1964, os lucros e dividendos estavam sujeitos à tabela progressiva, da mesma forma que os demais rendimentos tributáveis. A partir de 1965, em algumas situações, podiam ser tributados exclusivamente na fonte, à opção do beneficiário.

Na década de 1980, com Margaret Thatcher como primeira-ministra do Reino Unido e Ronald Reagan como Presidente dos Estados Unidos, o movimento neoliberal ganhou força. Ficou mais pujante com o fim da União Soviética, em 31 de dezembro de 1991.

No imposto de renda do Brasil, a onda neoliberal se fez presente em meados da década de 1990. Lucros e dividendos receberam tratamento tributário nunca visto na nossa história.

Por força do art. 10 da Lei nº 9.249 de 26 de dezembro de 1995, os lucros e dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficaram sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integraram a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, domiciliado no País ou no exterior.

Quando lucros e dividendos foram considerados isentos, comentou-se que seria a tendência mundial, o futuro. O que se viu foi justamente o contrário. Países que os isentavam passaram a tributá-los. O México retomou a taxação em 2014. A Eslováquia não tributava, mas instituiu uma contribuição social de 14% sobre dividendos para financiar a saúde. Na crise de 2008, os Estados Unidos ampliaram a alíquota dos lucros.

Nos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), somente Estônia não tributa lucros e dividendos. Nem nos Estados Unidos, símbolo do capitalismo, há isenção.

Alguns argumentam que tributar lucros e dividendos poderia ir contra o sistema produtivo. É o mesmo argumento usado quando o imposto de renda foi instituído no Brasil. Não há provas evidentes que mostrem ser verdade.

No exercício de 2018, ano-calendário de 2017, segundo o sítio da Receita Federal, os lucros e dividendos representaram 280 bilhões de reais, conforme dados informados pelos contribuintes. Se houvesse uma tributação exclusiva na fonte, com uma alíquota de 15%, por exemplo, seriam arrecadados, anualmente, cerca de 42 bilhões de reais.

O ótimo livro “Uma história de desigualdade, a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013” de Pedro H.G. Ferreira de Souza, ganhador do prêmio Jabuti de melhor livro de 2019, traz a série histórica da desigualdade no Brasil. Abrange um período de 87 anos. Os períodos em que a obra do Pedro Souza mostra que houve menos desigualdade foram aqueles com mais justiça fiscal no IRPF. Quando houve menos justiça fiscal, a contrapartida foi mais desigualdade. Coincidência? De forma alguma. A legislação tributária, em especial a do imposto de renda, tem forte impacto no nível de desigualdade.

Justiça fiscal e arrecadação não são conflitantes. Pelo contrário. Podem e devem caminhar juntas.

A isenção de lucros e dividendos é uma aberração tributária que, praticamente, não encontra paralelo no tempo e no espaço: no tempo, a partir do exercício de 1997, ano-calendário de 1996; no espaço, apenas Brasil e Estônia.

Em tempos de pandemia causada pelo Covid-19, é imperioso trazer de volta a tributação sobre lucros e dividendos, proposta que vem sendo cada vez mais discutida por economistas, parlamentares, sindicatos, associações, enfim, está ganhando corpo junto à sociedade. As propostas apresentadas no documento “TRIBUTAR OS RICOS PARA ENFRENTAR A CRISE” , publicado recentemente, contemplam a tributação sobre lucros e dividendos (entre outras), como forma de gerar recursos necessários para situações emergenciais e fazer justiças fiscal e social.

Cristóvão Barcelos da Nóbrega é auditor-fiscal aposentado da Receita Federal, autor dos livros “80 anos de imposto de renda no Brasil” e “História do imposto de renda no Brasil, um enfoque da pessoa física” e também pesquisador, roteirista, editor e diretor de 5 filmes com temas vinculados à história do imposto de renda, todos disponíveis no YouTube: “Justiça fiscal no imposto de renda”, “Ninguém escapará”, “Nascimento de um cargo”, “Nascimento de um tributo” e “A história do imposto de renda contada por meio de fatos curiosos”.

Referências:

INSTITUTO JUSTIÇA FISCAL, Imposto sobre a Renda da Pessoa Física, por que os pobres pagam mais que os ricos?, Revista Ano 1, Número 1, Agosto a Novembro de 2019.

NÓBREGA, Cristóvão Barcelos da, 80 anos de Imposto de Renda no Brasil, Brasília, Secretaria da Receita Federal, 2003.

_________ ,História do Imposto de Renda no Brasil, um enfoque da pessoa física (1922-2013), Brasília, Secretaria da Receita Federal, 2014.

ORGANIZADORES José Roberto Afonso, Melina Rocha Lukic, Rodrigo Octávio Orair e Fernando Gaiger Silveira, Tributação e desigualdade, Casa do Direito, 2017.

SILVA, Fernando A Rezende da. O imposto sobre a renda e a justiça fiscal. IPEA, 1974.

SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de, Uma história de desigualdade, a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013, Anpocs e Hucitec Editora, São Paulo, 2018.

WINCKLER, Noé, Síntese da evolução do imposto de renda no Brasil. Brasília, 2002.


Fonte: Brasil de Fato